sábado, 24 de março de 2012

O que éramos

(Dudu Costa)

O que éramos jaz num caderno branco
Momentos de um prazer desencarnado
E se a entrega faz-se à sombra de um fado
Devolvo o dharma ao drama - este amor franco

O que éramos jaz numa terna cama
Por entre cobertores e gemidos
E as juras feitas bem ao pé do ouvido
São fogo transmutado em branda chama

O que éramos jaz num fraterno abraço
No balançar de um tempo descontínuo
Não sei se me perduro em teu espaço

Ou faço ardor das dores que imagino
Já que o bater do peito é descompasso
É pássaro que canta um suave trino.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Por que não a Literatura?

(Dudu Costa)

A José Saramago
Por que não a literatura?
A transmutação da chuva em palavras
torrencialmente líquidas.
Jogos minimizadores da existência,
dores de uma existência livre
ou a presença decassílaba de uma paisagem
nunca dantes navegada.

A literatura,
lítera altura onde se maltratam os poetas,
de onde se jogam velhos escritores ateus,
é o mago ofício que sara o segredo da língua.

Quantos sentidos podem o paladar do poeta?
Com quantos parágrafos pode o escritor
causar a renascença?

quarta-feira, 21 de março de 2012

As aves

(Dudu Costa)

A Elis Linhalis Costa
Os pássaros escutaram teu choro metálico
Trouxeram do ar sementes de azul puro
e depositaram no teu colo pequenino.
Em tuas veias corre a chuva terrestre.

As estações repousaram cores no teu berço,
imenso território de dores e sonhos.
Nos desejos miúdos estabeleceu-se a brancura
Anseias por um mundo de paz e lactose.

Sugas a vida nos vales do colo materno
De suas montanhas ósseas obténs o calor e a defesa,
conchas e melodia marinha. De noite
mergulham as aves nos teus olhos de topázio e tempestade.

Velas

(Dudu Costa)

Nana neném
que, breve,
o tempo virá desmoronar-lhe
a firmeza da pele
e a solidez dos ossos,
cavando poços nos teus olhos bonitos.

Nana neném
que ontem não voltará
e amanhã você não sabe.
Ninguém toca o velo da horas.

Nana neném
que hoje recomeçamos
a reencontrar a delicadeza,
esperança largada
no vau dos segundos.

Nana neném
que é tempo
de não ocupar-se
com as velas içadas
pelo tempo.

Transbordante

(Dudu Costa)

Durante muitos anos
o mar torturou minhas noites,
rajadas de sal fustigavam minhas pedras
e me lavavam o limo das rochas.
Já não me lembro quantas ondas
açoitaram meu palato
e zurziram minhas metáforas líquidas.
O mar
furou meus anseios com sua insistência monossílaba
comendo, sórdido,
minhas mulheres e meus poemas mais febris.
Minhas manhãs
foram arremessadas ao azul negro
das crateras oceânicas,
tornei-me escravo de impérios e reinados minerais.
Acordava com o coração assaltado de algas,
inundado por baleias e cardumes
que jamais puderam abandonar
meu corpo totalmente,

meu corpo transbordantemente
água
do mar.

A chuva azul

(Dudu Costa)

A Elis Linhalis Costa

Acordarás antes que os galos libertem a manhã
das entranhas da noite.
No teu rosto pedaços de minha infância adormecida
legados à tua carne de estrelas,
sonhos descobertos em contagotas.
Ainda não ouso decifrar-te
do alto de minha sabedoria
atormentada de cosmogonias,
envaidecida na raiz
e nas pequenas folhas manchadas de amarelo.
Celebro o amor no teu umbigo curado,
nos teus pequenos pés sem estradas.

Semearei no teu sorriso a liberdade das primaveras temporãs,
tardes de sol e de lua surgindo e ressurgindo
no silêncio escondido
entre as batidas do teu peito,
na escuridão acalentada
das pálpebras fechadas.
Barcos, flores, nuvens
poemas descerão feito a chuva azul das aquarelas
e encontrarão abrigo no teu coração de pétala
anos a fio regado
pelos cansados dedos
de teu flamejante pai.